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Pinocchio: Guillermo del Toro consegue inovar e supreender um clássico já saturado pelo cinema


Antes de assistir esta última versão para Pinóquio, questionei-me se realmente seria necessário mais um filme para uma das fábulas que obteve inúmeras produções cinematográficas 
(o primeiro longa foi concebido ainda nos anos quarenta, sob a ótica de Hamilton Luske)A resposta foi sim, por uma única razão: trata-se da direção de Guillermo del Toro em parceria com Mark GustafsonLançado recentemente pela Netflix, o mais novo trabalho do cineasta mexicano traz uma série de bons motivos para que você possa conferir esta adaptação que consegue se distanciar das demais e nos apresentar uma narrativa mais “sombria” e adulta, ou seja, longe das tradicionais animações para o público infantil. O novo Pinóquio é a síntese do pensamento filosófico – do ponto de vista da nossa condição humana – e, dentro de uma inocência, ele também nos revela certos valores espirituais. Claro, tudo isso com um pano de fundo que faz surgir todos esses questionamentos e compreensão: a guerra.

Por ser uma produção em stop-motion, temos no cast grandes nomes para a dublagem/narração dos personagens: Gregory Mann (Pinóquio), Ewan McGregor (Grilo-Falante), Fin Wolfhard (Pavio), Ron Perimen (Podesta), David Bradley (Geppeto), Tilda Swinton (Fada), Cate Blanchett (Spazzatura), Christoph Waltz (Count Volpe), Tom Kenny (Benito Mussolini) entre outros. O roteiro foi escrito por G. del Toro e Matthew Robbins. A produção ficou a cargo do próprio del Toro e a produtora ShadowMachine.

Esta nova história, escrita originalmente pelo jornalista e escritor italiano Carlo Collodi, é ambientada em uma Itália fascista, no período da Segunda Guerra Mundial e tem uma roupagem mais séria e melancólica. Após uma fatídico acidente com Carlo, filho de Geppeto, o carpinteiro esculpe um boneco, o qual ele criou como forma de suprir o vazio deixado pelo seu fruto. Graças a um pedido do Grilo Falante (morador da árvore derrubada pelo Geppeto), a Fada transforma o desejo de Geppeto em realidade, que é dar vida a uma marionete. Com a chegada de Pinóquio, renasce no senhor desiludido novas esperanças, o mesmo deposita amor e cobrança na sua invenção e espera que sua criação corresponda exatamente nos moldes que seu falecido herdeiro (Carlo) fazia.

Com uma suposta dívida impagável, Geppeto se sente obrigado a ceder o seu “filho” para um charlatão (Count Volpe), – mais um desses oportunistas que coloca a ambição pelo poder e dinheiro acima de tudo – e, em sequência, o fantoche é obrigado a compor as tropas do exército italiano. E é justamente nos takes de recrutamento que textos irônicos e de pura chacota ganham destaque, satirizar a demagogia daqueles que usam discursos de heroísmo para, de fato, atender interesses singulares e fazer da vida humana uma espécie de moeda de troca é uma das tônicas de del Toro. Em uma Itália tomada pelo clima da guerra e sob o comando de Benito Mussolini, ou seja, a trama resgata este importante momento para acrescentar camadas de sarcasmo, mais especificamente nas passagens onde o falso discurso de devoção à pátria – adotado pelos militares –  é usado como desculpa para que a supremacia do homem possa dominar os mais frágeis.

De forma filosófica, também é discutido uma questão da qual não temos como fugir: a morte. Desde o início, o espectador se depara com o amargo sentimento de perda – sim, refiro-me a Geppeto. O carpinteiro reage todo seu drama da maneira mais atônita possível: afundado no álcool e totalmente consternado pela não aceitação da partida do filho, ele modela Pinóquio na base de sentimentos amargurados e sob total delírio. Ao contrário das outras estórias, aqui o boneco de madeira não é tão inconsciente sobre sua condição e nem tem a cisma de se transformar em humano. Com uma certa pureza, ele nos traz questionamentos sobre a nossa espiritualidade e de como devemos lidar com ela, valorizando mais os momentos os quais passamos aqui na terra.

No quesito design de produção, temos umas das mais belas para este formato (stop-motion) – não foi à toa que a produção levou nada mais que uma década para que o trabalho pudesse ficar pronto. Guillermo deixou claro em algumas entrevistas que esta era uma criação que ele sonhava em concretizar há muito tempo, pois existe uma identificação da vida pessoal dele com o conto – mais pelo fato de ter sido um jovem diferente e isolado da convivência social. Toda a montagem fora feita de forma manual com complementação gráfica – uma construção rica em perfeição e detalhes. O Pinóquio de del Toro é mais rústico, sem o perfeccionismo que estamos acostumados a conferir nas versões anteriores, mas em compensação, ao fundo, revela a beleza da compaixão que pode ser encontrada em muitos de nós, seres mortais – e isso consegue imprimir muito bem a natureza e o clima que a película tem a passar.

Deixo aqui registrado, de todas as releituras, esta é a que mais me agrada, justamente por trazer um enredo amadurecido e questionador. A ideia de explorar o fascismo e a propaganda para atrair inocentes para um cenário de horror também foi de grande sacada. A percepção que o protagonista tem do mundo é muito mais evolutiva, mescla a honestidade com a consciência do que já é certo e errado. Geppeto traz características e problemas reais, desses que nos cercam diariamente. E como acréscimo do que escrevi na introdução, muitas versões para obras como esta, tem o objetivo de se transformar em meras máquinas caça-níqueis, sem compromisso com a qualidade, respeito aos fãs e visando apenas o lucro – o que, felizmente, aqui não é o caso. Guillermo del Toro e sua equipe conseguiu inovar e surpreender, quesitos totalmente plausíveis e necessários para validar uma remontagem de uma literatura renomada como esta. 


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